Finalmente Vergílio Ferreira, um dos maiores ícones da literatura portuguesa, por diversas vezes nomeado ao prêmio Nobel de literatura, é publicado no Brasil. Autor de contribuição vasta e inspiradora, é neste Manhã submersa, romance publicado em 1954, que ele aprofunda um viés narrativo que perduraria ao longo de toda a sua obra: o existencialismo como forma de compreender as grandes questões humanas. Manhã submersa conta a história de António Lopes, jovem de origem humilde que, enviado ao pequeno Seminário da Diocese da Guarda contra a sua vontade, vê-se às voltas com descobertas intensas que terminarão por moldar sua vida e seu futuro. Narrado pelo próprio António, o romance é o recordar dessa vida, mas não se trata de uma memória qualquer: o que reside no personagem é uma memória angustiante, questionadora, por vezes trágica, preocupada em analisar a consciência como em Dostoiévski, num misto de constatação da realidade e um imaginário tão real quanto sufocante. Alter-ego do próprio Vergílio Ferreira, António Lopes desfia seus descaminhos munido de vasto conhecimento próprio a respeito do que era a vida nos seminários durante as primeiras décadas do século XX. Sentimentos como angústia, solidão, o temor a Deus e ao pecado, além do temor aos padres, representantes do divino na terra e, portanto, perfeitos, colocam sob uma lupa os sentimentos conflitantes do jovem António que, somados à descoberta do corpo, evidenciam ainda mais suas dúvidas. O romance será um fragoroso deleite para os entusiastas da literatura portuguesa ou para quem tenciona descobri-la. Em suas construções sobre pontes universais e atemporais, Vergílio Ferreira nos presenteia com uma obra que nos faz revisitar nossos percursos, expiar nossos equívocos e descobrir novas trilhas, como bem faz a literatura que ergue pilares. Marco Severo