Esta não é uma orelha comum pois o livro a que se refere é incomum. Raro. Estranho. No entanto, a história ou as histórias a que se referem os Papéis de Maria Dias são incrivelmente comuns. Como o nome da protagonista, Maria, o assunto delas é o mesmo que seu sobrenome indica: dias que correm e escorrem, e nem se faz necessário o d maiúsculo, já que os dias de Maria Dias - o assunto deste livro - são chinfrins. Minúsculos. Mas eis que a vida mais comum é tingida de absurdo. Toda existência tem à solapa uma vida secreta. Esta, no caso, tem cinco vidas secretas, cinco Marias Dias cujas cinco existências se dão da maneira mas estapafúrdia no interior da labiríntica cachola de Luci Maria Dias Collin, primeira e única, irrepetível. Atravessada por dezenas de vozes - as vozes das numerosas testemunhas das vidas das cinco Marias -, Luci Collin faz o leitor hesitar: seria uma autora ou um instrumento, quem sabe uma pianola, daquelas que se valem de mecanismos pneumáticos para tocar músicas registradas em rolos de papel perfurado, tamanha é a fidelidade com que ela capta a dicção alheia e a devolve em forma textual? De estrutura cristalina de tão geométrica, o romance contrapõe à suposta normalidade dessas vidas-de-maria, as biografias extraordinárias de cinco cientistas: o racionalista-dogmático Christian Wolff, o astrônomo James Bradley, o multicientista Christiaan Huygens, o megaultracientista John Hadley (como esses nomes se parecem, não?) e André-Marie Ampère, criador da eletrodinâmica. Todos homens. Todos célebres. Contraposto às coisas concretas que preenchem a vida das cinco Marias, a esses fatos miúdos, o extraordinário se dissipa e algo, aí sim, verdadeiramente extraordinário entra em jogo: o absurdo se impõe através da sinfonia vocal da boataria harmônica composta pelas muitas vozes que aprovam e ao mesmo tempo negam vidas que, de outro modo, não teriam sido vividas. A estratégia de Luci Collin é camicase: despreza a recepção, e compreende a literatura como objeto fora do mercado. Ela sabe, como Thoreau, que o comércio amaldiçoa tudo o que toca. Em tempos de mercantilização extrema, nunca uma mulher sozinha em casa diante da página em branco - a produzir algo que não vende barato - foi tão perigosa. Joca Reiners Terron
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