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Não simplesmente por causa das laranjeiras enfileiradas dos dois lados da rua principal. Nem apenas pelo sempre perfume de laranja madura. Tampouco pelas fumaças, fugidas dos tachos, que se exibiam à frente dos turistas, puxando os olhares para as janelas com legendas: Doce de Laranja. Não era por nada disso, mas existia mesmo uma estranha e mágica névoa alaranjada naquele lugar." E foi dentro dessa névoa alaranjada que Carolina e seu irmão Zezin viveram os desacontecimentos dos dias, junto com o filhote de dragão que tinha espírito de formiga, enquanto o quintal poderia virar um mar cheio de…mehr
Não simplesmente por causa das laranjeiras enfileiradas dos dois lados da rua principal. Nem apenas pelo sempre perfume de laranja madura. Tampouco pelas fumaças, fugidas dos tachos, que se exibiam à frente dos turistas, puxando os olhares para as janelas com legendas: Doce de Laranja. Não era por nada disso, mas existia mesmo uma estranha e mágica névoa alaranjada naquele lugar." E foi dentro dessa névoa alaranjada que Carolina e seu irmão Zezin viveram os desacontecimentos dos dias, junto com o filhote de dragão que tinha espírito de formiga, enquanto o quintal poderia virar um mar cheio de peixes e os garotos da escola voavam por dentro das histórias, puxados pelo colega que não se chamava Albano, até um céu de fundo do mar.
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Janaína Michalski Você já deve ter ouvido um bocado de gente dizer que adora o mar. Eu sou igual a todo o mundo: amo o mar. Muito mesmo. E adoro usar o mar como exemplo pra falar de alguma coisa que não sei explicar direito. Aí a pessoa já sabe que o assunto é profundo, misterioso, enorme. Sabe, apesar da imensidão, pra mim o mar nunca significou separação, mas união. Foi ele quem construiu o Brasil, ao trazer pra cá mais de dez milhões de africanos na era colonial e quase seis milhões de imigrantes de vários países do mundo, a partir do século XIX. Mas foi em 1957 que o mar trouxe pro Brasil a pessoa mais importante de todas as pessoas importantes trazidas por ele: minha mãe. Ela e a família embarcaram no primeiro navio possível, após o ultimato de um governo nazista do Egito. Foi uma viagem longa, com uma parada de um mês na Itália, por causa de doença na família, e mais um mês a navegar. Metade desse tempo a menina de 11 anos levou para enxugar as lágrimas e se conformar com as raízes arrancadas. Na outra metade da viagem, ela se dedicou a estudar a língua do país no qual chegaria. Passou dias e noites mergulhada no único livro em língua portuguesa que havia no navio. Uma gramática de português de Portugal. No porto de Santos, sem ainda imaginar que estava sendo abençoada por todos os santos, minha mãe, aquela menina, fez uma promessa. Sem nem saber o que era promessa ainda. Inconformada por não conseguir pronunciar um "a" na língua daqui, numa rasgada necessidade de se reconstruir, fazer laços e criar novas raízes, ela jurou: dominaria o português. Sem nem saber o que era jura ainda. Depois que minha mãe se formou em Letras e virou mestre em Literatura Brasileira, eu nasci. Meu nome, Janaína, ela tirou de um poema do pernambucano Manuel Bandeira. No Rio Grande do Sul, durante as festas juninas, ela me vestia de prenda gauchesca. Depois, quando fomos morar em Rondônia, porque ela foi lecionar na universidade de lá, descobrimos os vestidos de lese, que me transformavam numa princesinha caipira. Mais tarde, em Brasília, nas apresentações de balé clássico, ela dizia que a única diferença entre mim e as bonecas russas das caixas de música é que eu sorria. Cresci indo às praias, aos igarapés, às serras e às cachoeiras de todo o Brasil. Festejávamos Pessach, Natal, Rosh Hashaná, São João. Comíamos acarajé, musse de cupuaçu, feijoada, caldeirada de tucunaré, tabule com quibe cru. Eu estava sempre no meio das feiras, das capoeiras, dos sambas e das óperas que ela adorava ouvir, especialmente enquanto limpava a casa. Eu já era quase uma professora quando uma zombação me tirou o rumo. "Janaína Didio Michalski! Que nome esquisito, nada combina com nada!", gargalharam minhas colegas da escola de normalistas no Rio de Janeiro. Concordei com elas e achei que deveria me chamar Sarah, Veruska ou Natasha. Tive uma crise de identidade que parecia não ter fim: Sou judia? Cristã? Espírita? Não tenho sotaque, não tenho cara de estrangeira, não me pareço com uma brasileira... "Eu não sou daqui!", gritou meu coração. Com um grande pacote de tudo o que eu tinha sido e achava que não era mais, ou do que eu ainda era e achava ser um completo absurdo, bati à porta de minha mãe. Reclamei da descombinância do nome, da incoerência das escolhas, das múltiplas cidades, do singular sincretismo de religiões, da falta de centro no meu interior. (...)
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